Nas entrevistas, quatro denunciantes e sete testemunhas expuseram detalhes dos supostos assédios praticados por Marcius Melhem
Porto Velho, RO - Quatro mulheres que acusam o humorista Marcius Melhem de assédio sexual e sete testemunhas romperam o silêncio e, a convite da coluna, decidiram mostrar seus rostos e dar a primeira entrevista sobre o caso. Melhem foi denunciado em dezembro de 2019 pela atriz Dani Calabresa, ao compliance da TV Globo, onde ele era o diretor do núcleo de humor. Hoje, ele é investigado num inquérito policial aberto em 2020 pela Delegacia da Mulher do Rio de Janeiro e processa Calabresa por danos morais.
Nesta sexta-feira (24/3), a coluna publica dois vídeos desta reportagem especial. No primeiro, “Caso Marcius Melhem: elas falam”, você assiste à entrevista dada pelas atrizes Dani Calabresa, Renata Ricci, Georgiana Góes, Veronica Debom, Maria Clara Gueiros, as roteiristas Luciana Fregolente e Carolina Warchavsky, os diretores Cininha de Paula e Mauro Farias, e os atores Marcelo Adnet e Eduardo Sterblicht.
O segundo vídeo, “Caso Marcius Melhem: ele fala”, traz uma entrevista com o próprio Melhem, em que o humorista teve a oportunidade de responder às perguntas que ainda lhe precisavam ser feitas. Assista aos dois vídeos ao fim deste texto.
Nas entrevistas, as atrizes e suas testemunhas expuseram detalhes dos supostos assédios. Segundo eles, Melhem teria a prática de mantê-las sob seu domínio, ora impedindo que elas participassem de novelas na Globo, ora fazendo com que não só as atrizes como diversos outros profissionais tivessem um permanente sentimento de dívida de gratidão com o chefe. O humorista teria ainda o hábito de contracenar encostando o pênis ereto em atrizes ou tentando forçar sua língua em beijos que deveriam ser técnicos.
“Estava insustentável trabalhar em um ambiente em que eu comecei a perceber que eu era barrada dos convites; que eu não era liberada para as coisas; que eu estava trabalhando com tremedeira; que ele se aproveita das brincadeiras para brincar ereto; que ele pega de verdade; ele tenta enfiar a língua de verdade. Não é selinho, não é piada, não é brincadeira”, contou Dani Calabresa.
Georgiana Góes, Renata Ricci e Veronica Debom afirmaram também terem sido assediadas e contam por que só após o relato de Calabresa decidiram denunciá-lo.
“Quando saiu na imprensa a notícia sobre o assédio sofrido pela Dani, eu entendi todos os comportamentos típicos de assédio que estavam acontecendo, tudo o que eu tinha ouvido falar quando comecei na TV Globo. Eu entendi que era verdade, que eu tentei bloquear um tempo como se não fosse”, lembrou a roteirista Carolina Warchavsky.
As sete testemunhas que participaram da entrevista com as denunciantes — os atores Maria Clara Gueiros, Eduardo Sterblicht e Marcelo Adnet, os diretores Cininha de Paula e Mauro Farias e as roteiristas Carolina Warchavsky e Luciana Fregolente — descreveram um ambiente de trabalho tóxico, em que posturas assediosas se confundiam com brincadeiras e piadas, numa mistura em que a linha entre chefe e funcionários era perigosamente fluida.
“O que me chamava mais atenção era uma certa falta de vida pessoal. Ele queria transformar aquela coisa do trabalho, a espontaneidade das relações profissionais, para a vida dele”, contou o ator Marcelo Adnet.
Relembraram o poder que Melhem tinha nas mãos como o único diretor de humor da Globo e deram detalhes de como era a relação com o chefe, que hoje, em retrospecto, veem como também marcada por assédios morais.
“Para mim, o ambiente do Núcleo de Humor da Globo era muito divertido, mas tinham momentos de constrangimento, que eu demorei para entender que não eram normais e tinham o nome de assédio”, explicou a atriz Georgiana Góes.
Na entrevista de Melhem, o humorista rebateu as acusações que lhe foram feitas, mas admitiu que pode ter errado com algumas das mulheres que o denunciaram.
“Tem gente que publica essa carta do compliance dizendo que a TV Globo comprovou um assédio que não existe. A carta da emissora não fala em assédio. Eu cometi erros — eu assumo que cometi — eu nunca disse que eu não cometi erros. Eu falei exaustivamente, várias vezes, que eu acho que cometi erros”, disse.
Sobre Dani Calabresa, Melhem afirmou que pode “ter passado do ponto”, mas reforçou não ver assédio em sua insistência para conquistá-la. Perguntado pela coluna se não percebia que repetidas tentativas frustradas são assédio, Melhem disse que entendia a reação de Calabresa, com brincadeiras e mensagens carinhosas no WhatsApp, como uma sinalização para ele prosseguir.
“Ela [Dani Calabresa] nunca me disse ‘não’. Só disse ‘sim’. Você não pode desdizer que você tinha uma intimidade, que você brincava. Se a Dani Calabresa tivesse me dito em qualquer momento: ‘Não, não quero’, ou dado a entender isso, eu teria parado imediatamente. Ela me dava sinais repetidos de que existia uma intimidade entre nós, de que podia acontecer”, disse o humorista, ignorando que qualquer pessoa tem diferentes maneiras de dizer não.
A atriz, em sua entrevista, explicou por que agia dessa maneira.
“Não tem um manual de instrução para lidar com uma situação que te deixa constrangido. Cada uma lida de um jeito, né? Eu lidava com brincadeira, sabe? Ele falava: ‘Tá gata’. Eu respondia: ‘Deus te pague’, ‘É porque você não viu o buço’, ‘Sai tudo no banho, a maquiagem sai’, ‘Ai Deus te pague. Obrigada pelo elogio, mas é um amigão’. Mas tenta se colocar no meu lugar. Eu amava trabalhar nesse ambiente e, para não criar uma briga com o meu chefe, eu fingia que achava engraçado. Eu cortava ele pessoalmente e compensava na mensagem“, explicou Dani Calabresa
O uso por Melhem de mensagens de WhatsApp amistosas trocadas entre ele e as denunciantes é a espinha dorsal de sua estratégia de defesa e são, na visão do humorista, provas de que suas acusadoras não sofreram assédio. Mas as mulheres que denunciam o ator dizem que a insistência do ex-chefe as deixaram traumatizadas e querendo sair da TV Globo.
“Eu também não queria comprar briga com o chefe, porque eu amo trabalhar. Então, comprar briga com ele, sabe? Custaria mesmo a minha carreira. Só que chegou um ponto que eu queria sair. Para mim, eu não tinha medo de sair. Eu tinha medo de ficar”, contou Cabalabresa.
A saída de Melhem da TV Globo, em agosto de 2020, interrompia, ao menos na empresa, a carreira de sucesso de um dos mais estrelados nomes por trás da renovação da área na emissora. Sob seu comando, o núcleo de humor havia conseguido criar programas e quadros como “Zorra”, “Tá no Ar”, “Isso a Globo não mostra” e outras atrações de linguagem moderna, capaz de competir em qualidade com o Porta dos Fundos e outros coletivos nascidos na internet.
Melhem saiu meses após o início da investigação da emissora sobre o relato de Calabresa e de outras profissionais que, após o dela, procuraram o compliance. Na imprensa, o caso estourou para valer em dezembro de 2020, o que fez a Polícia Civil do Rio instaurar um inquérito. À Delegacia da Mulher no Rio de Janeiro a Globo afirmou, em 2022, que decidiu afastar o humorista porque sua postura não seria condizente com “os princípios e valores da empresa”, sem dar mais detalhes. Na época do afastamento, a empresa preferiu informar sobre sua saída por meio de um comunicado ao público em que o humorista era afagado, sem nenhuma menção a alguma postura inadequada.
“Quando eu perguntei para a TV Globo na época qual é a prova que eu tenho então que não houve assédio, eles responderam: ‘A prova que você tem é a sua saída com todos os direitos e com a sua carteira de trabalho limpa'”.
Sobre essa afirmação, a TV Globo pontuou, por meio de sua comunicação, que, “sempre que solicitada, forneceu às autoridades todas as informações sobre o caso, que refletem precisamente o que ocorreu à época no processo de compliance e no desligamento de Marcius Melhem”.
Ao longo desta sexta-feira e no fim de semana, a coluna trará outras reportagens em texto com trechos das entrevistas das denunciantes, de seus testemunhas, de Marcius Melhem e também de três pessoas apontadas pelo humorista que poderiam dar depoimentos favoráveis a ele. Foram entrevistados os roteiristas Nelito Fernandes e Gabriela Amaral, que trabalhavam na redação do “Zorra”, e Alice Demier, que era uma das diretoras do programa. Os três não aceitaram gravar em vídeo.
Procurada para comentar outros momentos das entrevistas em que foi citada, a Globo enviou, por meio de sua assessoria de comunicação, a seguinte nota:
“A Globo não comenta casos levados ao seu Compliance e aproveita para reiterar que a empresa mantém um Código de Ética em linha com as melhores práticas atualmente adotadas, que proíbe terminantemente o assédio e deve ser cumprido por todos os colaboradores, em todas as áreas da empresa – e em nenhuma delas é tolerada qualquer forma de assédio. Da mesma maneira, a Globo mantém uma Ouvidoria pronta para receber quaisquer relatos de violação de seu Código de Ética, que são apurados criteriosamente, com a punição dos responsáveis por desvios. Nesse mesmo Código, assumimos o compromisso de sigilo em relação a todos os relatos de Compliance, razão pela qual não fazemos comentários sobre as apurações. Nosso sistema de Compliance também prevê o apoio integral aos relatantes, proibindo qualquer forma de retaliação em razão das denúncias”.
Ao publicar esta série de reportagens, a coluna espera contribuir para esclarecer o que se passou no núcleo de humor da maior TV brasileira em um de seus períodos áureos e, assim, ajudar a sociedade a entender o que é o assédio sexual e por que é uma missão de todos enfrentá-lo.
Fonte: Metrópoles
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