Felipinho, que nasceu no interior de São Paulo, está treinando com a seleção sub-17; em novembro, equipe disputa o Mundial da categoria
Porto Velho, RO - Em um comercial de 2006 que se tornou célebre, veiculado na televisão por uma marca de refrigerantes, Diego Armando Maradona tem um pesadelo durante a noite: ele está vestido com o uniforme da Seleção Brasileira e canta o hino nacional ao lado de Ronaldo e Kaká.
Maradona então acorda, solta um “Ai, caramba!” e fica aliviado ao perceber que se trata apenas de um sonho ruim.
Morto em 2020, o ídolo argentino não viveu o bastante para ver que a brincadeira proposta pelo comercial há quase duas décadas poderá, de certa forma, ser cumprida de fato por uma outra pessoa no futuro próximo. Com a diferença de que, no caso de Felipe Rodríguez Gentile, os símbolos estarão invertidos.
Filho de pais argentinos, o garoto de 16 anos nasceu em Vinhedo, interior de São Paulo, e foi chamado na última semana para um período de treinos com a seleção sub-17 da Argentina, que em novembro disputará o Mundial da categoria.
Felipinho, como é chamado, tem sido observado há algum tempo pelos scouts da Associação do Futebol Argentino, que além de mantê-lo no radar querem garantir que o atacante, atualmente no Preston North End, da Inglaterra, defenda a Albiceleste e não o país em que nasceu. Um desejo também do próprio Felipe.
“Eu e minha mulher, quando mudamos para o Brasil, a gente levou nossa cultura junto. Costumes, a comida, tudo… E acho que ele pegou, né. Copa América, Copa do Mundo. sempre estivemos torcendo pela Argentina, então a nossa influência nisso foi muito grande”, conta o pai, Fernando, em entrevista à CNN Brasil.
Ele também adora o Messi, tem uma admiração incrível. Na Copa do Mundo de 2018, da Rússia, ele coloriu o cabelo de azul. Imagine você: um argentino de cabelo azul em uma escola brasileira. Uma figura. Então ele sempre foi, para o futebol e para muitas outras coisas, muito argentino por nossa causa. Mesmo tendo nascido no BrasilFernando, pai de Felipe, à CNN
No ano de 2002, em meio a uma das piores crises da história da Argentina, a empresa em que Fernando trabalhava propôs a ele uma transferência para o Brasil. Ao lado da esposa e ainda sem filhos, mudou-se para Vinhedo, onde terminaria formando sua família.
Seis anos depois da mudança para o interior paulista, o casal, já com Felipe e Mateo (o mais velho), decidiu se mudar para a Itália. Foi na Europa que Felipinho teve o seu primeiro contato com a bola. Desde então, não largou mais o futebol.
De volta ao Brasil após a experiência italiana, Felipe passou por diversas escolinhas e clubes. Rocinhense de Vinhedo, Country Club de Valinhos, Paulista Louveira, testes na Ponte Preta. E alternando entre o campo e o futsal.
“Ele jogou muito futsal que, como você sabe, é muito popular no Brasil. Sempre fez muitos gols, foi artilheiro dos campeonatos, artilheiro da equipe, ganhou muitas premiações”, diz o pai, orgulhoso.
Em janeiro de 2020, de novo por uma oportunidade de trabalho, a família se mudou para Liverpool, na Inglaterra. O reencontro com o futebol começou na escola, seguido por algumas partidas com o Huyton Juniors, um time local. Até que olheiros do Liverpool observaram Felipe, gostaram do que viram e o convidaram para ser testado na academia dos Reds.
“Ele fez os testes, mas veio a pandemia e complicou tudo. Sem jogos, tudo fechado, joga ou não joga… No fim das contas o Liverpool deixou ele livre, mas o recomendou para o Preston North End, onde ele está jogando agora”, explica Fernando.
Formado na base do clube, único campeão inglês invicto na história ao lado do Arsenal, o brasileiro começou a se destacar e chamou a atenção no time sub-18 do Preston. Em uma partida da FA Youth Cup em dezembro de 2022, contra o Rotherham, marcou cinco gols.
O desempenho foi tão impressionante que o técnico do time principal, Ryan Lowe, chamou o garoto para participar dos treinos com os profissionais. Felipe, inclusive, esteve no banco de reservas nos cinco primeiros jogos da temporada, mas ainda não fez sua estreia pela equipe, atual líder da segunda divisão inglesa.
A ascensão rápida no Preston acendeu o alerta na AFA, que — com a ajuda de um scout argentino que vive na Espanha — passou a seguir o atacante mais de perto e o chamou para um período de treinos no prédio da entidade, em Buenos Aires, como parte da preparação argentina para o Mundial sub-17 da Indonésia, daqui a dois meses.
“Brasil e Inglaterra o convidaram para treinar. A gente vinha acompanhando o garoto, se destacou muito recentemente. Está entre os dois ou três jogadores do exterior que podem brigar por um lugar na lista [do Mundial]”, afirmou o técnico da seleção sub-17, Diego Placente.
Felipinho comemora com a mão cheia após marcar cinco gols em um jogo pelo Preston / Divulgação/Preston North End
Felipinho não seria o primeiro
Apesar da história inusitada, Felipe não será o primeiro brasileiro a defender a Argentina caso jogue uma partida oficial pela equipe nacional. O precedente, porém, remonta à década de 1930.
De acordo com o livro “Quién es quién en la Selección Argentina”, de Julio Macías, o meia defensivo Aarón Wergifker, nascido em São Paulo em 1914, defendeu a Albiceleste em cinco partidas entre 1934 e 1936 — todas contra o Uruguai.
Seus pais eram russos e emigraram para o Brasil no início do século passado, mas ficaram apenas alguns meses no país antes de se mudarem para a Argentina, onde Wergifker faria carreira no futebol.
“Qual é a sua pátria?”, perguntou o jornalista Borocotó, da revista El Gráfico, para o então jogador do River Plate em uma reportagem de 1934.
“Brasil”, respondeu Wergifker. “Foi lá que eu nasci”.
Felipinho, cujo apelido não poderia ser mais brasileiro, desconhece a trajetória de Aarón Wergifker, mas dorme pensando em vestir a camisa da Argentina. E sem sustos, pois defender as cores da Albiceleste é o seu verdadeiro sonho.
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