Dia da Criança: como a ideia de infância mudou ao longo do tempo

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Dia da Criança: como a ideia de infância mudou ao longo do tempo


Crianças em escola no Rio, em 1958: segundo pesquisadores, instituições do Estado Moderno delimitaram o espaço destinado à infância

Porto Velho, RO - O historiador francês Philippe Ariès (1914-1984) nunca foi uma unanimidade. Mas as ideias contidas em seu livro História Social da Criança e da Família, de 1960, são até hoje referência para estudiosos da infância, principalmente pelas hipóteses bastante interessantes sobre a evolução da maneira como as crianças são encaradas pela sociedade - que celebra, no Brasil pelo menos, o Dia das Crianças em 12 de outubro.

Segundo o livro, até o começo da Idade Moderna, o mundo ocidental não dispensava tratamento especial para os mais novos, vistos como miniadultos. A partir de documentos antigos, principalmente pinturas medievais, Ariès conclui que a infância não era vista como uma fase específica da vida. Por isso, quadros mostram crianças vestidas como pessoas em miniatura e, ainda de acordo com o autor, desde os primeiros anos da infância havia uma convivência constante com o mundo dos adultos, o que incluía jogos, instrumentos, trabalho e até mesmo exposição à sexualidade.

Ariès também diz, baseando-se no fato da raridade de túmulos dedicados a crianças no período, embora fosse grande a mortalidade infantil, que essa banalização da morte nos primeiros anos de vida acabou provocando uma total ausência de vínculos de amor familiar. Em outras palavras, era como se não valesse a pena investir tanto esforço e afeto às crianças, diante da incerteza de sua própria sobrevivência.

“O conceito de infância foi atribuído ao historiador Ariès. No entanto, outros pesquisadores, como [o historiador americano] Peter Stearns, em sua obra A Infância [de 2006], questionam tal ideia”, afirma à BBC News Brasil a pedagoga Maria Angela Barbato Carneiro, professora na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Ela afirma que, se “o conceito de infância está relacionado ao papel que a criança ocupa na sociedade” e não há registros sobre isso anteriores ao historiador francês, “atribui-se a ele os primeiros estudos sobre ela”.

“Na sociedade medieval […] o sentimento da infância não existia — o que não quer dizer que as crianças fossem negligenciadas, abandonadas ou desprezadas”, diz Ariès, no livro. “O sentimento da infância não significa o mesmo que afeição pelas crianças: corresponde à consciência da particularidade infantil, essa particularidade que distingue essencialmente a criança do adulto, mesmo jovem. Essa consciência não existia.”


Balanço em praça de Botafogo, no Rio, em 1966

Na arte

“Até por volta do século 12, a arte medieval desconhecia a infância ou não tentava representá-la. É difícil crer que essa ausência se devesse à incompetência ou à falta de habilidade. É mais provável que não houvesse lugar para a infância nesse mundo”, pontua Ariès.

Ele observa que as crianças eram pintadas com deformações, como se fossem réplicas menores de adultos. E cita uma ilustração que consta de evangeliário feito por volta do ano 1000, no Sacro-Império Romano Germânico. “O tema é a cena do Evangelho em que Jesus pede que se deixe vir a ele as criancinhas […]. Ora, o miniaturista agrupou em torno de Jesus oito verdadeiros homens, sem nenhuma das características da infância: eles foram simplesmente reproduzidos numa escala menor. Apenas seu tamanho os distingue dos adultos.”

Descrevendo outra obra, Ariès lembra que “o pintor não hesitava em dar à nudez das crianças, nos raríssimos casos em que era exposta, a musculatura do adulto: assim, no livro de salmos de São Luís de Leyde, datado do fim do século 12 ou do início do 13, Ismael, pouco depois de seu nascimento, tem os músculos abdominais e peitorais de um homem.”

Ele defende que essa ideia da infância como um período próprio da vida havia se perdido com a romanização do mundo, na Idade Média. E só seria recuperada com o fim dessa fase histórica.

A partir do século 13, ele nota o reaparecimento de figuras infantis, mas ainda ligadas ao religioso — ou seja, não crianças exatamente, mas anjos, em que “os artistas sublinhariam com afetação os traços redondos e graciosos — e um tanto efeminados — dos meninos mal saídos da infância”. “Já estamos longe dos adultos em escala reduzida […]”, comenta.

O historiador notou que a criança só começa a protagonizar retratos já no século 15, mas ainda assim com trajes de adulto.

Em efígies funerárias, a situação encontrada pelo pesquisador foi ainda mais tardia: remonta ao século 16 a presença de imagens alusivas a crianças mortas. “Ninguém pensava em conservar o retrato de uma criança que tivesse sobrevivido e se tornado adulta ou que tivesse morrido pequena”, explica ele. “No primeiro caso, a infância era apenas uma fase sem importância, que não fazia sentido fixar na lembrança; no segundo, o da criança morta, não se considerava que essa coisinha desaparecida tão cedo fosse digna de lembrança: havia tantas crianças, cuja sobrevivência era tão problemática.”

“O sentimento de que se faziam várias crianças para conservar apenas algumas era e durante muito tempo permaneceu muito forte”, afirma. Ele se baseou em relatos que traziam histórias como a de uma mulher, no século 17, que estava nervosa por dar à luz ao sexto filho e era consolada por uma vizinha que lhe lembrava: “antes que eles te possam causar muitos problemas, tu terás perdido a metade”.

“As pessoas não se podiam apegar muito a algo que era considerado uma perda eventual”, diz Ariès.

Ele conta que muitas famílias optavam, inclusive, por retardar em alguns anos o batismo dos filhos. E isto fazia com que não houvesse a necessidade dos ritos cristãos do enterro. “Consta que durante muito tempo se conservou no País Basco o hábito de enterrar em casa, no jardim, a criança morta sem batismo”, aponta ele. “[…] será que simplesmente as crianças mortas muito cedo eram enterradas em qualquer lugar, como hoje se enterra um animal doméstico, um gato ou um cachorro?”.

Havia então quem ainda entendesse as crianças como um ser marginal, que ainda não haviam se inserido completamente na vida. Por esse entendimento, bastava a criança superar esses primeiros anos, cuja sobrevivência era mais difícil, para logo ser considerada parte do mundo dos adultos.


Crianças como miniadultos: quadro ‘As Meninas’, de Velázquez, é um exemplo trazido pela pedagoga Maria Angela Carneiro

Sexualidade

Outro ponto curioso abordado pelo historiador francês diz respeito à sexualidade — ou como esta era tratada em relação às crianças. Para isso, ele utiliza como fonte o diário do médico de Henrique 4º (1553-1610), rei da França, especialmente as anotações sobre fatos corriqueiros do filho do monarca, o futuro rei Luís 13 (1601-1643).

Quando o menino tinha menos de 1 ano de vida, o médico escreveu: “Ele dá gargalhadas quando sua ama lhe sacode o pênis com a ponta dos dedos”. E, mais tarde, relata que Luís passa a exibir seu órgão sexual sempre que avista um criado.

“Muito alegre, ele manda que todos lhe beijem o pênis”, relatou o médico, quando o herdeiro tinha 1 ano de idade. Alguns meses depois, quando ficou arranjado seu futuro casamento com a infanta da Espanha, ele passaria a colocar a mão em seu pênis sempre que os adultos lhe perguntavam “onde está o benzinho da infanta?”.

A julgar pelos relatos, todas essas brincadeiras de cunho sexual eram encaradas com naturalidade, nunca com reprovação. Aos quatro anos, conforme o diário, ele já havia aprendido, na teoria, como ocorria o ato sexual.

Espaço da infância


Crianças brincam no Jardim do Méier, no Rio, em foto de 1970

Mas Ariès nota que a partir do século 16 é possível verificar um movimento de inclusão da criança, sem respeitar suas diferenças, ao mundo dos adultos. Primeiro, como um divertimento. O filósofo Montaigne (1533-1592) escreveu, sobre o gosto pelo pitoresco e a graça dos pequeninos, que com eles era possível se divertir “para nosso passatempo, assim como nos divertimos com os macacos”.

“Esse sentimento podia muito bem se acomodar à indiferença com relação à personalidade essencial e definitiva da criança, a alma imortal”, diz Ariès.

O historiador nota que a partir do século 17 a criança começa a protagonizar retratos de família. Na mesma época, a infância passa a ser entendida como uma fase da vida.

Essa definição vai ficando mais intensa à medida que a sociedade moderna se organiza. As rotinas de trabalho, dentro do contexto industrial, acabam por criar uma divisão mais clara entre o espaço das crianças — ainda muito novas, impossibilitadas ao trabalho — e o espaço dos adultos — no qual, claro, estavam incluídas as crianças um pouco mais velhas, que também trabalhavam.

E a educação escolar começa a tomar a forma como a conhecemos — são nas escolas que as crianças têm seu espaço e, cada vez mais, passam a ser tratadas com o respeito devido à infância.

“Não saberia dizer se o conceito de infância acompanhou o próprio conceito de ensino como entendemos hoje mas, de fato, sempre foi um processo que envolveu ensino e aprendizagem”, comenta a professora Carneiro. “A escolarização assume um papel importante a partir da Reforma Protestante, quando surgem as escolas da igreja onde poderiam aprender a ler a Bíblia, porque antes eram privilégio da elite e da igreja.”

Ela lembra, contudo, que as crianças, “de fato tiveram seu lugar” no mundo a partir da Declaração dos Direitos da Criança, documento criado pela Organização nas Nações Unidas (ONU) em 1959. “É algo bastante recente e, mesmo assim, pouco respeitado”, diz.

Doutor em educação, arte e história da cultura e professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, Ítalo Francisco Curcio concorda com a ideia de que “o conceito de infância, como assimilamos hoje”, tenha surgido com a modernidade, “não por coincidência, paralelamente ao novo modelo de produção, surgido com a chamada primeira Revolução Industrial”.

“Até então […], o ser humano era visto e entendido socialmente num modelo de dois segmentos, o do ‘pré-adulto’, ou criança; e o do adulto”, diz ele, à BBC News Brasil. “Mais precisamos, o segmento antes da capacidade de procriação e o segmento a partir da capacidade de procriação”.


Crianças brincam de dança das cadeiras, em evento no Rio, em 1970

Curcio sintetiza: embora o conceito de infância existisse, de forma subliminar, desde a origem da humanidade, “somente a partir do fim do século 17 ele é efetivamente assimilado como uma fase do desenvolvimento da pessoa humana”.

“Mais precisamente, a partir do século 18, especialmente no meio cristão, passou-se a ver o ser humano, nos seus primeiros 10 anos de vida, como um tempo de crescimento não somente físico mas também intelectual, cultural e espiritual”, afirma ele.

A historiadora da educação e psicóloga Maria Cristina Soares de Gouvêa, professora na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) também situa a era moderna como o marco do surgimento da ideia de infância. “Veio mais ou menos com as mudanças advindas do que a gente chama de modernidade”, diz ela, à BBC News Brasil.

Isto porque a fundação do Estado moderno implicou na “necessidade de construção de uma ordem social ligada ao Estado, em que sujeitos não obedecessem mais apenas a disputas entre nobres”. Segundo ela, como era preciso desenvolver indivíduos “capazes de controlar a si mesmos” dentro dos princípios da “civilidade”, o momento para essa formação passou a ser a infância.

“Na virada do século 16 surge uma série de tratados, manuais de conduta, de educação moral, tudo ensinando como educar os filhos ainda no ambiente doméstico. Ao mesmo tempo, se expandem as escolas, ainda restritas às elites”, afirma a psicóloga. “A escola dá nova visibilidade à criança, cuja formação passa a ser entendida como função do Estado.”

É quando gradualmente começa a existir um momento determinado em que a criança “não é produtiva” porque “todo o investimento é voltado para sua escolarização”. “A criança, inicialmente de 8 a 12 anos, ganha uma nova função social: a função de aluno inserido na escola. Este é o modelo de infância que se constitui com a decadência do modelo da sociedade medieval”, diz ela.


Desfile de bonecas ocorrido no centro do Rio em 1962

Legado e controvérsias

Gouvêa lembra que o principal mérito da obra de Ariès está no papel de fundamentar o conceito de infância.

“Ele entendia que havia [no passado] uma indiferença em relação às crianças, um sentimento de indistinção entre infância e idade adulta. E uma certa indiferença afetiva, ligada à alta mortalidade e às condições de vida”, comenta ela. “Para ele, as crianças eram tratadas como pequenos adultos.”

Gouvêa acrescenta que “as pesquisas dele foram muito importantes porque ele foi o primeiro a trazer visibilidade para a história e para as ciências sociais acerca da questão da infância”. “A infância até então era entendida como tema restrito à psicologia e à pedagogia ou à pediatria. Ele trouxe a ideia da infância e o sujeito criança para o interior do campo história. Ele historicizou a noção contemporânea que temos da infância.”

Se o pioneirismo de Ariès é amplamente reconhecido, também não faltam críticas ao seu modo de teorizar a questão.

A psicóloga Gouvêa lembra que a pesquisa do francês foi “muito original” na utilização de lápides, pinturas de época, cartas e tudo o mais que ele foi levantando, “já que a criança não aparecia claramente nos discursos oficiais, então ele foi procurando traços do infantil nas produções culturais”.

Por outro lado, isto limitou seu alcance. “Ao pesquisar pinturas, ele só teve acesso a crianças nobres da Idade Média e não a criança concreta. E essa criança nobre era retratada como um pequeno adulto porque, historiadores da época vão dizer, naquela época a pintura não retratava o sujeito, mas a posição social”, diz a professora. “Era preciso então retratar o herdeiro do trono, por exemplo, daí essa posição do adulto.”


Meninas jogam ludo, em foto de 1975

Outra hipótese aventada por ela é de que, naquele tempo em que as telas precisavam de uma observação do artista, “a criança não apareceria porque era difícil retratá-las, difícil que ela ficasse parada por horas”.

“E pesquisas posteriores já mostraram que, mesmo com a alta taxa de mortalidade, isso não significaria que os pais tratassem os filhos com indiferença. Há cartas em que eles expressavam a tristeza pela perda dos filhos, o vínculo afetivo, etc.”, diz Gouvêa.

Carneiro lembra ainda que a “ausência de quaisquer tipos de representação referente às crianças” era menos por um entendimento do papel delas e mais “porque elas viviam pouco, morriam cedo”. “Imagine os povos nômades carregando os pequenos”, exemplifica. “A sobrevivência era difícil para os adultos devido às adversidades, imagine para as crianças.”

O historiador Stearns, por exemplo, defende que a parca documentação sobre crianças do passado é decorrente do fato de que as descrições das mesmas dependiam do ponto de vista dos adultos. “Na minha opinião, a infância sempre existiu, mas não temos dados suficientes para estudá-la melhor nos diferentes contextos e épocas”, completa a professora.

“Se por um lado, foram poucos os dados encontrados sobre as crianças, em algumas sociedades elas trabalhavam ajudando os adultos e participando de ritos de iniciação”, comenta a professora Carneiro.

Ela ressalta, contudo, que o Ariès precisa ser entendido “dentro de uma sociedade ocidental europeia” e, deste ponto de vista, considerando a época analisada, “ele está correto”. “Não podemos falar o mesmo de sociedades sul-africanas ou indígenas sul-americanos, porque as realidades eram outras”, afirma Carneiro.

A psicóloga Gouvêa acrescenta ainda que é preciso ter em mente a diferença entre criança e infância. O primeiro termo é carregado de universalidade: significa sujeito de pouca idade. “Já infância é uma construção social que age sobre esses sujeitos. Ou seja: a criança é criada de acordo com o modelo social de infância de sua sociedade, de sua cultura”, contextualiza.

Etimologicamente, a palavra infância vem do latim, da combinação de um prefixo de negação com um substantivo que significa “falante”. “Infância poderia ser entendia literalmente como ‘alguém sem fala’, ou que não sabe falar. Sem confundir, porém, com o significado de mudo. Entende-se por mudo quem não consegue falar, o que é diferente de não saber falar”, define Curcio.

Fonte: BBC News Brasil

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